De vez em quando algumas coisas interrompiam essa rotina, o que o deixava bastante abalado. Eis que uma vez ele viu-se sem o pó de café. Irritou-se com o imprevisto e depois consigo mesmo: porque não checou os mantimentos na noite anterior? Pegou a carteira e rumou para a mercearia próxima, que abria bem cedo. Foi nesse dia que aconteceu algo que lhe deu motivos para transformar sua rotina em fumaça. Ou pelo menos deu novos ares a sua vida.
Na fila da mercearia ele sentiu uma fragrância diferente. Não era o perfume da sua mãe. Não era o perfume de nenhuma das menininhas do colégio que ele frequentara há tantos anos. Não era o perfume da sua ex-mulher. Era algo novo, que instigava seus sentidos. Olhou para trás, buscando a dona do cheiro tão atraente. E vislumbrou uma garota fascinante. Baixinha, magra, jovem, ruiva, não devia ter mais que dezoito anos. Trazia uma aura encantadora, uma exuberância simples. E isso sem precisar de roupas chamativas ou maquiagem. Estava de cara limpa, usando uma calça jeans e uma blusa estampada com singelas flores. Não deu outra, ele caiu de amores.
Os dois saíram da mercearia praticamente juntos, mas ele não conseguiu falar nada. Não tentou se aproximar. Apenas ficou acompanhando com o olhar aquela menina, que montou numa bicicleta vermelha e saiu. Só depois que ela virou a esquina, ele conseguiu se mexer. "Inacreditável", ele pensou.
Queria descobrir mais sobre aquela garota, de qualquer jeito. Não a viu por alguns dias, angustiou-se. Até uma manhã na qual ele acordou mais cedo do que o normal, sem querer - tivera um pesadelo somado a um mal-estar. Olhou pela janela e surpreendeu-se com o que viu. A menina passava por ali de bicicleta bem naquela hora. Ele ficou bobo, olhando para ela, como da primeira vez. Suas mãos suavam de ansiedade. Mais tarde descobriu que era normal que ela passasse por ali todo dia, bem naquela hora. Não havia um dia no qual ela não fizesse isso, e só naquele dia ele descobriu isso. Passou a acordar mais cedo só para vê-la passar.
A existência daquela garota tinha mexido com o íntimo dele. Sua vida já não cheirava a mofo, agora só havia o perfume dela por todo lado. Agora ele podia sorrir. Pensava em como seria maravilhoso tê-la com ele e para ele, mas não conseguia se aproximar dela. Pensou em tentar uma amizade, mas de repente desistiu: conhecê-la poderia arrancar o véu da sua imaginação e revelar uma pessoa bem diferente do que ele pensava.
Um dia ela não passou de bicicleta pela rua dele. A preocupação e o medo surgiram. Foi como se o mofo voltasse a brotar na sua vida; seu mundo fez-se tristonho e cinza. Pior do que antes. "Que loucura, hein. Me apaixonar platonicamente por uma mocinha que eu mal conheço. Aí ela some e eu fico assim, na pior". Isso se repetiu no dia seguinte, causando-lhe ainda mais dor. E quando ele já estava disposto a voltar à vida de rotina e resignação, quando acordou no horário de sempre, fez as coisas de sempre, abriu a porta e saiu, viu-se diante de uma bicicleta vermelha parada no portão de sua casa. Lá estava a menina, de costas. Virou-se ao ouvir o som da porta.
- Pode me ajudar, moço? O pneu furou.
"Claro que posso te ajudar, sei remendar pneus muito bem, aliás, quer tomar um café comigo? Não se preocupe, eu tenho dias de folga sobrando, posso faltar ao trabalho. Ah, você tem aula? Deve ser uma boa aluna, não se preocupa. Você é muito bonita, sabia?"
- Acho que posso, sim.
"Venha, tome um café comigo, me deixe tirar esse casaco, sente no meu colo, conte todas as histórias da sua vida enquanto eu afago seus cabelos, me deixe te abraçar e beijar seu pescoço."
Ele foi em casa, pegou as ferramentas necessárias, a ajudou com o pneu sem se importar em se sujar. Ela ofereceu ajuda, mas ele fez questão de tomar o trabalho para si.
- Pronto.
- Obrigada, moço. Valeu mesmo!
A garota montou na bicicleta. Ele sentiu um impulso de gritar e pedir que ela voltasse, mas não conseguiu. Ficou apenas olhando, como da primeira vez.
"Quanta tolice eu penso. Parece que eu gosto de me iludir à toa".
Conto inspirado em: Ilusão à Toa (Johnny Alf)
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