sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Azul de tristeza e de paz (conto)

A festa estava animada e todos dançavam como se não houvesse amanhã, como se o amanhã não trouxesse consigo a ressaca alcoólica e moral. Aqui e ali, ela via olhos que brilhavam tanto a ponto de sair faíscas. Felicidade autêntica ou efeito de entorpecentes? Não dava pra saber. E, no fundo, isso não lhe interessava. Preferia andar pra lá e pra cá, pelos cantos do salão de festas do prédio, solitária, segurando a taça de curaçau blue com sua mão direita.
A mão esquerda estava fechada, e os poucos que observavam de fora, aqueles que não estavam absortos em seus infinitos particulares, não compreendiam a razão. Os mais atentos receavam que ela estivesse tendo algum problema. Os mais loucos pensavam que ela estava prestes a dar um soco em alguém.
Mas sua mão não trazia o prenúncio de uma situação violenta, até porque a moça era destra e bateria muito mal com a mão esquerda. Trazia apenas um pedaço de papel amassado. Um bilhete escrito a caneta azul de ponta fina. Um recado que já fora lido meia hora atrás, quando ainda tocava Jive Bunny na pista de dança. Foi uma situação ironicamente melancólica para ser vivida ao som de animados remixes de canções dos anos 50.
"Não me procure mais" era a mensagem contida naquele bilhete. Ela recebeu-o de um amigo, que serviu de correio deselegante e porta-voz da catástrofe. "O Wagner me pediu pra te entregar isso". Ingênua, ela até pensou ser um mimo de amor, algo para adoçar seu dia tão complicado. Mas a expressão do amigo parecia preocupada. Se ele leu ou não o bilhete, se ele sabia de algo que ela ainda desconhecia, era um mistério. O fato é que ela lera o bilhete e não soubera bem como reagir. A esperança de que seu companheiro viesse à festa transfigurou-se em ruínas de decepção logo no início da noite. E agora ela vagava com olhar vazio, a mente confusa pela situação e pelo álcool. O mundo girava devagar.
Aproximou-se da janela, olhou para o céu. Naquela região havia poucos edifícios e as estrelas da noite revelavam-se de forma rara de se ver no cotidiano fugaz e iluminado por luz elétrica. Suspirou profundamente, bebeu um gole do drink já aguado pelo gelo derretido, fechou os olhos por alguns segundos. Abriu-os e fitou longamente o céu. Seu olhar passeou pelos pontos de luz prateados, para depois reparar nas lâmpadas dos postes. Tão brilhantes quanto os olhos de quem dançava. Tão luminosas quanto o olhar daquele que se foi.
Abriu a mão esquerda e estendeu o bilhete diante de seus olhos. Leu uma, duas, três vezes, como se tentasse encontrar alguma mensagem oculta. Mas as palavras pareciam se embaralhar mais e mais. Pela primeira vez, uma lágrima de angústia e agonia brotou. Debruçou-se na janela e abaixou a cabeça, derrotada. Sentiu a aproximação breve de alguém e notou que haviam deixado uma nova taça de curaçau blue ao seu lado. Bebeu metade, de um só gole. Naquele momento ela queria a morte. Sentia-se morta por dentro. A rosa do amor havia despetalado. A moça ficou longos minutos na janela, ignorando todo o movimento ao redor. Como poderia haver diversão diante de tamanha derrota? Por instantes, até sentiu raiva das pessoas felizes.
No entanto, de súbito, teve uma epifania. Percebeu que não valia a pena chorar tanto assim. Pra quê? No fundo, não era nada sério. Era apenas mera diversão, uma coisa de pele, de fumar um cigarro, tomar um café e partir pro que interessa. Seu lado mais romântico até imaginava a possibilidade de surgir um sentimento, mas a razão tinha seus pés bem fincados na verdade: não passaria daquilo. Não era amor. Ele nunca esteve preso em sua gaiola particular, e, convenhamos, não era um pássaro digno de se exibir.
Ela respirou fundo, resignou-se e sorriu de contentamento. Quem estava livre era ela. Livre daquele chove não molha, daquela liberdade teórica que sempre acabava em pequenos ataques de ciúme todas as vezes em que ela ia para os braços de outro alguém. "Mas o relacionamento não é aberto pros dois lados?", ela perguntava. Ele ignorava solenemente esse questionamento.
Pois, enfim, isso acabou. Ela não iria procurá-lo mais. Enquanto dizia isso para si mesma como um mantra, ouviu soarem os primeiros acordes de uma canção desconhecida. Acordes frenéticos de piano, que eram seguidos por um órgão psicodélico. O som invadiu-a por inteiro. Era como se estivesse num transe, vivendo uma catarse, livrando-se de toda aquela dor. E dançou, mesmo que a música não fosse exatamente dançante ou animada. Era algo antigo, parecido com rock progressivo, blues, ela não sabia dizer. Mas não importava.
O dono da festa, ao vê-la dançar de forma tão viva e pulsante, até ficou com vergonha de tirar a música que tocou por engano. Todos os olhos, brilhantes ou não, felizes ou entorpecidos, agora olhavam surpresos para a moça. Livre. Feliz. Pássaro fora da gaiola parcialmente aberta, rodopiando com graça e falta de jeito, tropeçando algumas vezes pela ausência do equilíbrio que o álcool levou.
Ao final da canção, jogou-se no chão, meio caindo, e lembrou-se de descartar o fatídico bilhete. Fez-se o silêncio, seguido por aplausos entremeados por risos e interjeições de espanto. Ela levantou, arrumou os cabelos e saiu do meio do salão, assustada, dando-se conta do que havia acabado de fazer. Por trás do grupo de pessoas que agora começava a se dispersar, ela não conseguia ver seu amigo, que sorria satisfeito. "Até que foi bom ter forjado esse bilhete", pensou o rapaz.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Poison #2

Enquanto ela observava o perfil do rosto da sua companhia, os pequenos detalhes que as madeixas deixavam ver, a mesma dúvida de instantes atrás lhe atravessava as entranhas. Tão perto e tão distante. Tentou quebrar o gelo afastando os cabelos que cobriam o rosto dele, fazendo um elogio sem jeito. "Seu cabelo é tão bonito". Ele agradeceu e continuou a fitar a escuridão do horizonte, onde o céu e o mar se misturavam.
Mais tarde, em outra penumbra, a de suas emoções, ela se convenceu de que talvez fosse uma boa ideia cantar aquela canção. Aquela, em inglês, que ela conheceu graças a ele. Aquela que soou tão estranha num primeiro momento, mas depois revelou uma cativante melodia. Quem sabe, naquele momento, cantar aqueles versos simples poderia revelar suas intenções, num gesto kamikaze de quem não se preocupava com o amanhã, as outras chances, os outros troféus. "De tudo só quero o agora".
"I wanna love you, but I better not touch. I wanna hold you, but my senses tell me to stop". Ela cantaria baixinho, quase como quem entoa um mantra, e olharia bem em seus olhos surpresos. "I wanna kiss you, but I want it too much". Iria se aproximando devagar de seu rosto, de maneira demasiadamente teatral para ser verossímil, enquanto os outros casais ao redor faziam o que deveria ser feito. "I wanna taste you, but your lips are venomous poison". Sim, veneno. Um veneno do qual ela queria se embriagar, se intoxicar, morrer mil vezes. Na dúvida entre provar do veneno e se manter sã, porém, a decisão racional não foi a melhor.
Sobrou apenas a música, a intenção tardia, a caixa de memórias e a saudade do que não aconteceu. "I don't wanna break these chains". Se ela não queria ou não podia quebrar as correntes, estava além de sua compreensão. Restava, todavia, a consciência de que elas ainda existiam. Algo que nunca ocorrera antes em sua vida.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Poison #1

O mundo havia parado de girar e o vento gelado paralisava e arrepiava tanto quanto o nervosismo. Um momento em suspenso. Naquele olhar recíproco que se sustentou por segundos eternos, uma corda-bamba de emoções. Medo e desejo, um fio prestes a se romper.
Havia apenas o céu acima deles, uma paisagem decadente ao redor, o mar, ao fundo, envolto no véu da noite. Havia o véu da incerteza. Ela não sabia se deveria pegar a sombrinha e dançar na corda-bamba até alcançar o outro lado, ou se o melhor seria esperar um momento no qual não ventasse tanto. Um momento de brisa leve, calmaria, tudo certo e tranquilo. Sombra e água fresca. Não a tempestade anunciada. Quisera ela compreender o que se passava do outro lado da corda.
Mas, num riso sem jeito, como um raio vindo do céu, o fio do olhar cheio de intenções se rompeu sem que ninguém tomasse uma atitude. Ela resignou-se. "Momentos menos conturbados virão. Algo há de acontecer". Mais tarde, porém, deu-se conta de que a realidade não teria um encaixe perfeito como o quebra-cabeça dos seus desejos. Perdera a chance. Não haveria um dia de bonança.